domingo, 1 de março de 2015

50 Tons de Cinza: 'Precisamos de livros e filmes que mostrem uma mulher apanhando?'

Por Thais Zimmer

Não é nada do que você já não tenha lido antes, mas é sempre bom relembrar. Com o lançamento do filme 50 Tons de Cinza, o tema sexualidade feminina volta a ser abordado. E é impossível falar dele sem citar a luta das mulheres. E vice-versa. Lembro exatamente da náusea que senti ao passar os olhos pelos dois primeiros parágrafos do livro. Naquela noite, não passou disso. Era uma literatura porca, com frases mal construídas.

No outro dia, nova tentativa. Dividida, engrenei na história ora enojada pela má escrita, ora frustrada com a construção da mulher naquela protagonista. Quando alguém me dizia que o livro era ótimo, eu não entendia exatamente a que a pessoa estava se referindo - e sentia medo de perguntar. "Cinquenta Tons" acabou dividindo as pessoas em dois grupos em 2012, quando o livro foi lançado: as que o amavam e as que odiavam.

Sim, você pode me perguntar, e Henry Miller? E Charles Bukowski? E outros autores eróticos e pornográficos? Não feriam a imagem da mulher? Acho que não. Era outro contexto social. Mesmo nas visões masculinas, a mulher não aparecia de forma inferior. Ela não era submissa. Ela enchia a cara e não precisava de um homem pra limpar o seu vômito e lhe dar banho. Nesses relatos, ela era independente. Alguém pode me atirar uma pedra por escrever isso, mas a distinção de sexo, se analisada profundamente nesses dois autores, era quase nula. Em muitas situações, esses dois autores é que ficavam à mercê das mulheres - sempre construídas com personalidades fortes.

E L James propicia um livro sobre sexo para o universo feminino, mas ela traz mais do que uma simples contribuição literária. Ela traz a imagem de uma mulher frágil, envergonhada, nervosa, que se acha feia e insegura. Ela cria uma situação em que o homem bonito e rico tem poderes além de materiais. Ela inventa um contrato de submissão feminina e aprofunda o sadomasoquismo, o que é lido por mais de 100 milhões de pessoas. Sim, há paixão, ainda que o personagem Christian Grey negue no decorrer da trama. Mas essa construção da mulher, especificamente, é muito emblemática.

Será que neste momento, num período de luta contra o machismo, contra o estupro e a favor do aborto, as próprias escritoras mulheres não deviam pensar nessa causa ao publicar obras eróticas? Será que, quando o livro toma essas proporções, o movimento não fica prejudicado? 50 Tons de Cinza pode e deve ser usado para repensar a sexualidade da mulher, mostrar que ela deve se libertar na cama, sim, mas será que essa compreensão mais profunda não se perde no estereótipo raso que E L James construiu a partir de Anastasia?

Gostaria de dizer que não. Mas hoje e nos próximos dias as pessoas vão lotar os cinemas pra assistir uma história em que a mocinha inocente se submete ao galã rico. Parece que vivemos nos anos 20, não? Talvez, na prática, pouco tenha mudado de lá pra cá. Gente, os números ainda são alarmantes. Em matéria publicada pelo G1, pesquisas mostram que a cada quatro minutos uma mulher é vítima de agressão no Brasil. Para 75% dos entrevistados, as agressões quase nunca ou nunca são punidas. Outra pesquisa do Ipea mostra que a cada 1h30min ocorre um feminicídio no Brasil.

É muito provável que você conheça alguém que apanha ou alguém que se submete ao namorado ou marido. Talvez essas pessoas apenas não assumam. E não são somente as mulheres mais velhas. Tem menina de 20 anos, tal como a Anastasia de 50 Tons, que deixa tudo de lado pra viver para o seu par. Tem mulher de 30 sofrendo calada. Ou seja, precisamos, neste e em qualquer outro momento, de livros e filmes que mostrem, sem criticar ou discutir, uma mulher apanhando?

Fonte: http://www.brasilpost.com.br/thais-zimmer-martins/por-favor-mulheres-nao-de_b_6706906.html?utm_hp_ref=mulheres

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